segunda-feira, 13 de junho de 2016

O destino não dá uma segunda chance

Em agosto de 2014, comprei um Fusca. Mas não é um Fusca normal, comprei um tesouro: 1971, único dono, todo original, íntegro de carroceria e motor, e com nota fiscal de fábrica em perfeito estado. 
Era mais do que eu procurava naquele momento, pois pretendia aproveitar a companhia e incentivo do meu grande amigo Fabio e me tornar também um antigomobilista. Como o carro já tem mais de quarenta anos, precisava restaurar o interior e pintar a carroceria. 
Não passou outra pessoa pela minha cabeça, o profissional ideal para esse serviço era o Chicão, lanterneiro da minha confiança desde 2005. Como sou conhecido pelo extenso histórico de acidentes de trânsito, o Chicão fez serviços em seis dos oito carros que tive até hoje. Nos encontrávamos com frequência. 
Ele me ganhou como cliente após fazer um desafio. Meu segundo carro foi um Fiesta, apelidado de 'Gasparzinho' por um amigo de trabalho. No final de 2005, bati forte com o Gasparzinho na traseira de um Santana. Estava em busca de um lanterneiro para fazer o serviço e vários profissionais falaram que seria necessário trocar o capô. Quando entrei na Auto Mecânica Jofa, localizada na Estrada do Cafundá, na Taquara, fui atendido pelo Chicão, proprietário da oficina. Ele olhou o carro, fez o orçamento e disse que não precisaria trocar o capô. Questionei, mas ele respondeu sem titubear: "Se o carro não ficar bom, você não paga o serviço". O carro ficou igual 0km. Estava ali instituída uma relação de confiança e respeito. 
Passei a indicá-lo para todas as pessoas que conheço. Os que aceitaram a indicação, ficaram impressionados com a perfeição do serviço. 
Voltando ao Fusca, deixei na oficina do Chicão na semana seguinte a compra. Alguns meses antes, a diabetes havia levado metade de uma de suas pernas. Enquanto a prótese não ficava pronta, ele improvisou uma com pedaços de uma muleta e a forma de um sapato. Era algo incrível! 
Ele me contou que os médicos da ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação) ficaram tão encantados com a invenção criada por ele, que adiantaram o processo de confecção da prótese definitiva para que pudesse voltar a levar uma vida normal o mais rápido possível. 
Como eu estava ciente do estado de saúde dele, deixei o Fusca lá dizendo: "Não precisa ter pressa, Chicão. Esse carro será meu hobby e só confio em você para realizar este serviço." Ele levou minha fala ao pé da letra. Estacionou o Fusca em um canto da oficina, desmontou todo e em quase dois anos, só mexeu no assoalho, nas caixas de ar e nos pés de coluna. 

Fusca em agosto de 2014, na entrada da Auto Mecânica Jofa

Nos últimos dois anos, visitei a oficina a cada dois meses e sempre ouvia que o carro ficaria pronto no mês seguinte. Ele priorizava os carros mais novos e como sabia da minha consideração por ele, me enrolava na maior cara de pau, mas nunca consegui sentir raiva dele. Decidi que era mais fácil tirar o Fusca de lá do que acabar me aborrecendo, pois jogaria no lixo 11 anos de confiança e respeito. Acordei hoje determinado a dar o ultimato nesta situação. Pesquisei outra oficina, vi o preço do guincho e fui à Auto Mecânica Jofa depois do trabalho. Chamei o Fabio para ir comigo, pois sabia que ele não me deixaria cair novamente na lábia do senhorzinho de fala mansa. Ao chegarmos na oficina, às 13h, avistamos o Fusca parado, desmontado, bem distante do carro que eu imaginava levar para as exposições. Perguntei pelo Chicão, pronto para informar que retiraria o carro da oficina, mas ele não estava lá. Um funcionário me informou que o Chicão havia falecido na tarde de ontem, em decorrência de um AVC. O seu corpo estava sendo velado naquele momento, pois o enterro estava marcado para às 14h. Fiquei sem palavras, olhei para o Fusca parado, abandonado e vi o meu retrato após receber a triste notícia de forma tão inesperada. A vida quis que a minha visita de hoje fosse realmente o ultimato. 
Descanse em paz, Chicão!

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