segunda-feira, 7 de março de 2016

O preço do amor

Minha mãe sempre fala: "O Renato só ama de verdade os gatos". Essa frase nunca me atingiu, pelo contrário, pois sentir um amor verdadeiro, sem cobranças, interesses ou prazo de validade, é um privilégio. Conheço muitas pessoas que não tiveram essa experiência. Nunca fui uma pessoa solitária, nunca mesmo. Sempre estive rodeado da família, grandes amigos, namoradas... Porém, só esses pequenos animais conseguiram tirar o melhor do meu lado humano. Se um dia alguém me vir sorrindo em frente a um computador, pode ter certeza que não estou assistindo Porta dos Fundos, será algum vídeo bobo de travessuras de felinos.
Peguei meu primeiro gato, o Frajola, em 1997. Era um lorde: educado e imponente. Respeitado por todos os outros gatos e até por cachorros. Morreu em 2009, vítima de um tumor. Na verdade, 2009 foi um ano tenebroso por causa de grandes perdas: papai, um amigo de infância, um vizinho que era um tio e o meu filho Frajola. Filho, isso mesmo.
Eram cinco aqui em casa até a manhã desta segunda-feira. Cheguei do trabalho há pouco, mas só tinha um. Brooke, a mais distante de mim, herdeira do reinado que o Frajola deixou vago. Tive alguns problemas com uma vizinha grávida nas últimas semanas por causa dos gatos. Não há o que discutir com uma mulher grávida, ela sempre terá a razão. Só me restou uma opção: doar meus filhos. Fui pai, politicamente incorreto ao extremo. Falava com eles coisas capazes de estragar a formação do caráter de qualquer criança. No entanto, acho que concordavam com os meus posicionamentos.
Como era bom assistir telejornais com eles, todos os personagens que apareciam nas reportagens eram alvos de comentários. Como confiava em meus filhos, sabia que eles não espalhariam os meus pensamentos por aí. Eles também nunca questionaram meus comentários enquanto assistíamos corridas juntos. Tenho certeza de que eles acreditavam que realmente entendo de automobilismo. Também eram fãs do Soundgarden, pois nunca reclamaram do som no volume máximo e nem dos meus gritos tentando imitar os agudos do Chris Cornell. Durante os anos que dividiram espaço com a minha bateria, foram os únicos que nunca protestaram enquanto eu tocava. Sempre que me arrumava para encontrar uma nova pretendente, eu avisava: "vocês vão ganhar uma nova madrasta". Eles me respondiam com olhares, miados, lambidas, mordidinhas, arranhões ou fugas. Uma relação de cumplicidade, paciência e confiança, que acredito não ser capaz de ter com nenhuma pessoa. Praticamente, todos os meus gatos foram batizados com nome de pilotos, músicos ou personagens de séries que gosto.
Ontem à noite, quando voltava do trabalho, já sabia qual seria o destino deles na manhã de hoje. No som do carro, tocava o CD " All That You Can't Leave Behind". Foi na introdução da música " When I Look At The World" que a ficha caiu. A noite, as ruas vazias, a música, o vento e a saudade antecipada. 

Me despedi de todos antes de ir trabalhar hoje cedo. Agradeci a Sophia por tomar conta do meu carro na garagem todos os dias. Pedi desculpas ao Matt por todas vezes que o chamei de afrescalhado. Ao Chris, pedi perdão por tê-lo retirado das ruas há alguns meses e não ter cumprido a promessa de cuidar dele para sempre. Para doar a Bia tive que pedir a bênção do meu saudoso pai, pois era a gata preferida dele. Não havia óculos escuros no mundo que pudessem disfarçar meu olhar perdido no trajeto até o trabalho. A casa está assustadoramente mais vazia, a Brooke continua sem entender o que aconteceu e eu sigo pedindo a Deus que eles possam ensinar a seus futuros pais o que é o amor. Perdi o privilégio, agora, só sou mais um.

(Chris Cornell no dia que o tirei das ruas)