segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Cheguei bem a tempo de participar da história

Eu tinha apenas cinco anos de idade, mas os acordes que entravam pela janela do apartamento me deixavam agitado. Pedia para minha mãe me levantar até a janela da área de serviço, para que pudesse assistir os rapazes ensaiando no terraço da casa de um vizinho. O ano era 1989, e a banda se chamava "Não". Foi assim durante muitos fins de tardes naquela passagem de década. Eu já sabia o nome de todos, pois fomos criados na mesma vila. Mesmo eu sendo em média 13 anos mais novo que os integrantes da banda, com 9 anos de idade eu já fazia o possível para ficar perto deles após os ensaios, deixando de lado os amigos da minha idade. Por isso eu não aprendi a jogar bola, soltar pipa e todas as outras coisas normais para um garoto criado no subúrbio na década de 1990. Eu só queria saber de música. Mas agora estou falando de 1993, a banda "Não" mudou o nome para "Piu Piu e Sua Banda". O Underground carioca estava no auge e o grupo dos meus vizinhos encabeçava esse movimento ao lado de outras bandas também formadas no subúrbio da cidade: Gangrena Gasosa, Poindexter, Sountien Xiita, Zumbi do Mato e Sex Noise
Quase que semanalmente eles eram citados nos principais jornais da época: O Globo e Jornal do Brasil.
Isso era demais para um garoto de 9 anos louco por música, pois os meus ídolos eram meus vizinhos. E o melhor, sempre fui muito bem recebido nas reuniões da banda, pois eu ainda não tinha idade para frequentar os shows. Eles me tratavam como um mascote. Lembro que no dia 10 de março de 1994, quando completei 10 anos de idade, os rapazes da banda estavam reunidos na portaria do prédio do Marcelo Pedra (baixista do grupo), e o Piu Piu (vocalista), me deu parabéns da seguinte forma: "O Grande Pequenino Tupã está completando uma década hoje". Eu não lembro de um presente que ganhei nesta data, mas não esqueço essa, que foi a primeira vez que o Piu Piu me chamou colocando "grande pequenino" antes do meu apelido de infância. Considerava isso um elogio, pois entendia que ela estava dizendo que eu era uma criança com atitudes de adulto. Fui chamado de "Grande Pequenino Tupã" por um bom tempo.

O jornalista Leonardo Panço, uma das figuras mais importantes dessa geração por ter sido guitarrista do Sountien Xiita, dono do selo Tamborete e autor de fanzines na época e do livro Esporro, descreveu o Piu Piu e Sua Banda numa publicação recente no site "A Grande Roubada" da seguinte forma:
"No começo dos anos 90 o rock carioca era um misto de várias influências, várias bandas diferentes e muitas insanidades cometidas por jovens inconsequentes e anárquicos. Entre todos os loucos da época, Piu-Piu e sua banda, representados pela figura de Rogério Weimann, estavam no topo da cadeia alimentar da doideira. Ganso no palco, fogão, comida, prostitutas, pessoas peladas, seminuas, canja jogada no 'sagrado' palco do Canecão, gordura espalhada por todos os lados..."
(Leia a matéria na íntegra clicando aqui)

Já o Vital Cavalcante (ex-vocalista do Poindexter, atual do Jason e o principal responsável por manter viva a memória do underground carioca da década de 1990 garimpando fitas cassete, VHS, jornais, revistas e fanzines), publicou na semana passada um texto que resume de forma clara o que aconteceu naquele período:
"Seis Razões Pra Dar Tudo Errado: Gangrena Gasosa, Piu Piu e Sua Banda, Poindexter, Soutien Xiita, Sex noise e Zumbi do Mato.
O Rock brasileiro passou por uma grande renovação na primeira metade dos anos 1990. Mesmo como o estilo fora das atenções da mídia, centenas de bandas nasciam nas garagens, cenas musicais independentes se formavam. Os fanzines também vieram com força e faziam o papel que a internet faz hoje. A recém-nascida MTV instigava toda uma geração.
No Rio de Janeiro não foi diferente. A efervescência musical era grande: haviam, entre outros estilos, bandas de metal na zona oeste, de punk e grind na baixada fluminense, de hardcore melódico e indie na zona sul. Porém, houve um grupo de bandas oriundas dos subúrbios que não se encaixavam em nenhum dos rótulos acima. Com propostas musicais anárquicas, postura anti-comercial, apresentações caóticas e niilismo extremo.
Não foi algo combinado: cada uma dessas bandas forjou sua proposta obtusa sem conhecer as demais. Fruto talvez do inconsciente coletivo.
O destino quis que essas pessoas se reunissem em torno da casa Garage, na Praça da Bandeira. Talvez por não se encaixarem em outras cenas, Gangrena Gasosa, Piu Piu e Sua Banda, Poindexter, Soutien Xiita, Sex noise e Zumbi do Mato dividiram inúmeras vezes o palco da casa de shows, que foi a mais importante pro rock da época. Quem teve a chance de vivenciar esses dias nunca vai esquecer das loucuras que aconteciam: despachos voando do palco, gente pelada, gente pegando fogo, gente bebendo mijo, prostitutas dançarinas, dentes quebrados - parecia que tudo era possível dentro do Garage.
Existia uma vontade muito grande de "dar certo" fazendo tudo. A destruição do bom mocismo do rock dos anos 80 parecia ser a chave dos 90.
A maluquice inerente dessa trupe chamou a atenção da mídia, e algumas dessas bandas foram em algum momento da década a "aposta da vez". O problema é que a anarquia e o niilismo não era de fachada. Era real, era o dia a dia dessa rapaziada. Seria muito difícil "domesticar" o Saravá Metal do Gangrena Gasosa para as rádios, por exemplo.
Com o tempo, amizades se formaram e terminaram, músicos passaram de uma banda pra outra, discos foram gravados, bandas acabaram. Como ainda era uma época pouco digital, muito dessa cena ficou registrado em mídias obsoletas como VHS e fitas cassete.
Essa galera tinha o sonho de dar certo fazendo tudo errado. Pra viver de música, não rolou. Mas o conceito de sucesso é mais profundo que isso. Lançaram cassetes, LPs, CDs, fizeram videoclipes, inúmeros shows, influenciaram outros artistas e são lembradas até hoje, mais de 20 anos depois. Isso sem nenhuma grande corporação por trás. Queriam deixar sua marca, e nisso foram muito bem sucedidas. Tá de bom tamanho."

Voltando ao meu convívio com o Piu Piu e Sua Banda, eu finalmente fui a um show do grupo em dezembro de 1996, no clube Aspom. Na época o auge do underground já tinha passado e algumas bandas contemporâneas não existiam mais. O Piu Piu também já dava indícios que o fim estava próximo, mas como o único CD da banda só foi lançado em 1997 (ouça aqui), o grupo adiou seus últimos passos. As músicas "Bob Faz Meinha" e "Vila Mimosa" foram muito executadas no programa Cidade do Rock, apresentado pela Monika Venerabile na Rádio Cidade. Ainda em 1997, a banda lançou o clipe da música "Animal-Animais" (assista aqui), que também foi o único da história do grupo. Mesmo com a cena underground carioca enfraquecida, o Piu Piu e Sua Banda ainda era citado frequentemente pela mídia especializada. Na festa de lançamento do clipe, no Hard Rock Café, o cantor Lobão subiu ao palco para tocar bateria com a banda. O Lobão costumava citar o "Piu Piu e Sua Banda" como uma aposta, em suas entrevistas na época.
Mas o ano de 1998 chegou e os integrantes da banda não eram mais os garotos de 20 anos do início da década. E após um show na Fundição Progresso com a participação do Serginho Serra, guitarrista do Ultraje a Rigor, a banda anunciou o fim.
o vocalista Rogério Piu Piu havia se casado no ano anterior e seria a vez do baixista Marcelo Pedra naquele ano. Tavinho Menezes já era considerado um dos melhores guitarristas do Rio de Janeiro, e estava iniciando a sua brilhante carreira como músico, acompanhando artistas como Ivan Lins, Simone, Ritchie e Alexandre Pires. Quatro bateristas se revezaram durante o período de atividade do grupo: Cléber, Paulinho, Fabio Brasil (hoje no Detonautas) e Jorge Coimbra. Completava a formação da banda o percussionista e vocal de apoio Alexandre "Cegão".
Após dois anos, Rogério Piu Piu e Marcelo Pedra voltaram a fazer músicas juntos. Em 2001 foi o lançado o CD Duodeno da banda Mandril, que tinha uma proposta totalmente diferente do Piu Piu e Sua Banda. E foi neste período que deixei de ser o vizinho e fã, para participar do dia-a-dia do grupo, dando assistência de palco nos shows e cuidando da divulgação do grupo na internet. Mas o Mandril é uma outra história, que já contei neste blog (leia aqui).
Janeiro de 2014, uma mensagem chega no meu whatsapp sobre um possível show de retorno do Piu Piu e Sua Banda. Os integrantes do extinto grupo já estão com mais de 40 anos, e eu bem perto dos 30. Rogério Piu Piu e Marcelo Pedra estão entre os meus melhores amigos e a diferença de idade já não existe mais.
O Marcelo Pedra me enviou poucas informações na mensagem: "O jornalista Ricardo Alexandre está lançando um livro sobre o rock dos anos 90. Ele convidou o Piu Piu para fazer um show de reunião no festa de lançamento do livro no Rio. O Rogério Piu Piu aceitou. Agita isso aí!"
O Pedra sempre foi o principal articulador da banda, mas faz 2 anos que ele está morando em Brasília. O pedido dele foi uma ordem. Procurei o Rogério Piu Piu e logo ele me ofereceu a oportunidade de produzir a banda neste retorno, após 15 anos do fim do grupo. Outro dois integrantes da formação clássica da banda aceitaram o convite: o guitarrista Tavinho Menezes e o baterista Jorge Coimbra. Ficou combinado que o Marcelo Pedra faria apenas uma participação especial no show, pois ele não teria como vir ao Rio para participar dos ensaios. Completaram a formação da banda o guitarrista Marcelo Oliveira e o baixista Vicky Glitter, que já haviam tocado com o Rogério, Pedra e Tavinho no Mandril.
Mesmo estando entre grandes amigos, encarei o convite como um desafio profissional. Eles me deram carta branca para produzir artisticamente o grupo, participando de todas as decisões, desde o repertório até o tema do show, que foi a exumação da banda.
Foram apenas 3 ensaios e muitas risadas.
O evento do show de retorno no facebook chamou atenção de jornalistas que cobriram a banda na época e de músicos de bandas contemporâneas. O que era pra ser uma noite de autógrafos de um livro, transformou-se numa noite de celebração do auge da cultura underground carioca. Faltando 5 dias para o show, o jornalista Fabiano Moreira publicou uma matéria sobre o show de reunião, em uma página inteira no Segundo Caderno do jornal O Globo. (Link da matéria no Segundo Caderno do Globo)
Não consegui dormir na noite anterior ao show, pois se algo desse errado, o sentimento de incompetência seria eterno.
Sem ser muito egocêntrico, posso dizer que a apresentação do Piu Piu e Sua Banda superou todas as expectativas.

Marcelo Oliveira, Vicky Glitter, Marcelo Pedra, Jorge Coimbra, Tavinho Menezes, Ricardo Alexandre, Rogério Piu Piu, Alessandro Alr, Silvio Essinger e Pedro Só

O jornalista Bruno Eduardo, começou assim a matéria que publicou sobre o show no Portal Rock Press:
"Roubou a cena. Apresentando seu novo livro na cidade – o ótimo “Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar” – o jornalista Ricardo Alexandre sabia o risco que estava correndo quando convidou Piu Piu e Sua Banda para se apresentar no palco do Teatro Eva Herz- localizado no subsolo da Livraria Cultura (Cinelândia)."
(Confira a reportagem inteira no site da Rock Press clicando aqui)

Momento em que o Rogério Piu Piu roubou a cena

Já a equipe do portal La Cumbuba, considerou a festa de lançamento do livro como a mais divertida noite de 2014 até agora:
"A noite de lançamento no Rio do excelente livro 'Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar', do jornalista Ricardo Alexandre, foi a mais divertida de 2014 até agora. Tudo graças à Rogério Weimann, o Piu Piu, do Piu Piu e Sua Banda.
Era para acontecer um pocket show acústico, ao final uma sessão de autógrafos do livro e durante o show um pequeno debate com Ricardo, Piu Piu e os jornalistas Pedro Só (Billboard), Silvio Essinger (O Globo) e Alessandro Alr (Rádio Fluminense).
Mas Piu Piu roubou a cena com as histórias de suas tresloucadas apresentações no cenário musical alternativo dos anos 90, década e "cena" que são assunto do livro de Ricardo Alexandre. Se a banda realmente voltar, tinha que ser dedicado um espaço para que ele relembrasse sempre essas histórias.
Vestir sardinhas no primeiro festival Humaitá Pra Peixe e deixar o Espaço Sérgio Porto com cheiro de peixe por semanas; dar uma canja em show do Gangrena Gasosa e jogar um pote de canja de galinha na plateia; distribuir acarajés feitos de cocô de cachorro para o público que foi na festa do programa HellRadio, em Ipanema; fracasso durante uma performance sexual em cima do palco com moça da Vila Mimosa por culpa do seu "romantismo". Essas e muitas histórias inacreditáveis (porém reais) fizeram gargalhar o público que compareceu à Livraria Cultura para o lançamento do livro."
(Veja fotos e assista vídeos do show clicando aqui)

Além de reencontrar amigos dos rocks da vida, conheci colegas de profissão que são referências quando o assunto é música: Ricardo Alexandre (MSN / autor do livro 'Cheguei bem a tempo de ver o placo desabar'), Silvio Essinger (O Globo) e Pedro Só (Billboard).
Desde a festa de lançamento do livro, a banda já recebeu convites para fazer mais shows e uma repórter de uma grande emissora de TV já mostrou interesse em convidar a banda para ser personagem de uma reportagem especial sobre a cultura carioca.

Após o show: Tavinho Menezes, Marcelo Pedra, Renato Cantharino e Rogério Piu Piu

Posso afirmar que a banda voltou, mas agora a intenção é só se divertir entre amigos.
Saí do local do show com a sensação de dever cumprido. E nem precisava ter me agradecido duas vezes durante o show, pois eu apenas retribuí tudo o que a banda representa na minha história.

Até o próximo show!

Um comentário:

  1. Parabéns Renato Cantharino, pela sua competência e talento para fazer o que faz.Você conseguiu nesse momento, fazer os meus olhos brilharem.Obrigado por tudo que você tem feito.como falei no dia do show, você é um dos responsáveis por esse retorno.E o êxito nessa primeira aparição, posso dizer que 60% deve-se a você.

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